Por Bernardo Souto
O saudoso bardo Bruno Tolentino – em artigo publicado no Jornal do Brasil em agosto de 1995, e republicado recentemente como
apêndice da nova edição de sua Balada do
cárcere (Record, 2016) – explica bem a diferença que há entre
poesia e letra de música:
Letra não é texto, é
subtexto, até porque é esta a sua função. Hofmannsthal, o maior poeta austríaco
do século [20], era também o autor dos libretti para as óperas de Strauss, mas
não os reuniu às suas Poesias completas, pela óbvia razão de que a autonomia do
poema é de outra ordem. Auden jamais sonhou incluir seus libretti para
Stravinsky e Britten nos Collected longer poems, porque não são poemas, são poéticos, como bem
disse o Sr. Lyra, o que não basta para se constituírem em obra literária.
Fernando Pessoa chamou à
poesia ‘a música que se faz com as idéias’ ; os franceses chamam suas letras de
paroles e não de vers... As palavras
para um texto musical, mesmo erudito, não aspiram sequer à condição de arte
autônoma, menos ainda à de poema. Quanto às palavrosas ‘idéias’ dos senhoritos
do telecoteco, protestando contra suas “exclusões” de uma Antologia de Poetas,
são apenas simplórias, bamboleiam entre o violão, o tamborim na marcação e o
reco-reco. E não se trata nem sequer de
coisa deles: é fruto podre de outra armação dos notórios irmãos Campos, que por
sua vez copiavam (como é de seu hábito) a tese-hipótese, abortada nos anos 60,
do crítico inglês Frank Kermode em favor do letrismo dos Beatles como sendo
poesia. Foi-se ver, riu-se muito e nunca mais se ouviu falar dessa tolice no
mundo (como se sabe, civilizado) de língua inglesa.[i]
O poeta e ensaísta Wagner
Schadeck, meu companheiro de geração, também trata deste tema de forma
minuciosa, no denso ensaio Poesia, canto e canção, publicado na
Revista Amálgama (https://www.revistaamalgama.com.br/12/2016/poesia-canto-e-cancao/
).
De tempos em tempos, tal debate volta à tona.
A recente atribuição do Nobel de Literatura ao cantor e compositor
norte-americano Bob Dylan pôs novamente o assunto em evidência. Afinal de
contas, o que de fato diferencia o poema da letra de música? Nos próximos parágrafos, direi o que penso a
respeito, a fim de acrescentar algumas informações ao já riquíssimo corpus existente. Ei-las:
Na canção musical, como bem
percebeu Manuel Bandeira, a letra está como que “algemada à melodia”[ii].
A observação de Bandeira é bastante esclarecedora, uma vez que a melodia da
canção, muitas vezes, nasce antes da
letra (é importante salientar que canção
musical não tem nada a ver com a canção
poética, que é uma fôrma lírica surgida no medievo europeu). Já na poesia lírica, o campo de força sonoro, para usarmos uma expressão cara a Emil
Staiger[iii],
é construído através da recorrência intencional de certos sons semelhantes, tais
como: rimas, paranomásias, paralelismos, aliterações consonantais, assonâncias,
etc.; também é arquitetado pela cadência e pela modulação rítmica e acentual (ou
seja, a melodia é intrínseca). A poesia lírica não devem
ser moldada por nenhum elemento extrínseco ou exterior, sob pena de
redirecionar a correnteza da linguagem, interferindo naquilo que Valéry chamou
de “permanente oscilação entre som e sentido”[iv]
– fenômeno que se dá no seio mesmo da esfera sonoro-semântica do poema durante
a sua gestação –.
É que ritmo do poema, como bem
observou Vladimir Maiakóvski, nasce do “fluxo do psiquismo”[v],
que está diretamente ligado à Stimmung
– isto é, à “disposição anímica” através da qual “o sujeito mergulha em si mesmo”,
nas palavras de Staiger –. Ocorre que, quando existe a presença de um elemento
extrínseco – por exemplo, a melodia de origem instrumental –, essa “disposição
anímica” passa a ser pré-determinada, interferindo na sondagem autêntica do psiquismo profundo.
Para o poeta inglês Wordsworth, poesia
é "emotion recollected in tranquility" (“emoção recolhida na
tranquilidade”), recolhida dos recessos mais profundos da alma, onde medra a
recordação. “O passado como tema do lírico é um tesouro de recordação”, diz-nos
Staiger. É bastante significativo, a propósito, o regate etimológico da palavra
recordação feito pelo ensaísta alemão: re-cordar (do latim re-cordis, que significa trazer
de volta ao coração).
Fica claro, portanto, que a
poesia possui uma densidade bem diversa da canção musical popular – esta, em
geral, estruturada de maneira simples,
visto que o seu objetivo primordial é o entertainment,
o que praticamente a obriga a ser de fácil assimilação: em suma, a possuir um
tecido metafórico bem menos sofisticado e um ritmo que é refém da melodia extrínseca. Além disso, como observou Tolentino,
as melodias instrumentais, por via de regra, estão demasiado presas ao Zeitgeist,
ao espírito da época.
Outro ponto interessante é o
seguinte: tanto os textos dos salmos bíblicos como os poemas de provençais de Arnaut
Daniel, de Guilhem de Poitiers ou de Bernart de Ventadorn eram acompanhados por instrumentos
musicais, e não pré-moldados para se encaixar em melodias produzidas por
instrumentos de corda ou de sopro.
Podemos concluir, pelo que foi dito acima, que há diferenças
muito significativas entre a natureza do poema e a natureza da canção musical,
o que não quer dizer que a questão esteja encerrada. É que, embora não aconteça
com frequência, existem algumas letras de música que se sustêm como poemas de
valor. São os casos, por exemplo, das
milongas produzidas pelo grande escritor argentino Jorge Luis Borges (como a Milonga de Manuel Flores e a Milonga de Calandra), ambas incluídas
pelo autor portenho em suas Poesías
Completas[vi].
[i]
TOLENTINO, Bruno. A Balada do Cárcere.
Rio de Janeiro: Record, 2016. pp. 177- 179.
[ii]
BANDEIRA, Manuel. Manuel Bandeira: Poesia
e Prosa (vol. 2). Rio de Janeiro: José Aguilar, 1958.
[iii]
STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais de
poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.
[iv]
VALÉRY, Paul. Variedades. Tradução
Maiza Martins de Siqueira. São Paulo Iluminuras, 2011.
[v] MAIAKÓVSKI, Vladimir. “Como fazer versos?” in
SCHNAIDERMAN, Boris. A poética de
Maiakóvski. São Paulo: Perspectiva, 1971.
[vi]
BORGES, Jorge Luis. Poesía completa.
Barcelona: Debolsillo, 2015.
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