segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

A ÁGUA DA FONTE ESCONDIDA




Por Bernardo Souto



Quero a água da fonte escondida. 

(Manuel Bandeira)


A crítica literária brasileira – seja a de orientação conservadora, seja a de orientação progressista – sempre escolhe os seus queridinhos da vez. Enquanto isso, escritores de primeira linha como Gustavo Corção, César Leal ou Ângelo Monteiro, por exemplo, permanecem sendo pouco divulgados. Sempre foi assim, sempre assim será. O velho Machado de Assis, em suas Memórias Póstumas de Brás Cubas, já diagnosticara a irrefreável tendência do brasileiro às idéias fixas: “Deus te livre, leitor, de uma idéia fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho. Vê o Cavour; foi a idéia fixa da unidade italiana que o matou”.  

T.S. Eliot, sem dúvida um dos maiores críticos literários do séc. XX, dizia que toda admiração absoluta é uma espécie miopia, já que leva à cegueira idolátrica e à ilusão de que existem escritores indefectíveis.  Na conferência O que é poesia menor, de 1944, Eliot ironiza a postura do leitor que valoriza apenas os autores eleitos pelos estudiosos da literatura como os melhores:     

“Na verdade, sentir-me-ia inclinado a duvidar da veracidade do amor à poesia de qualquer leitor que não tivesse uma ou mais dessas afeições pessoais pela obra de algum poeta sem grande importância histórica: suspeitaria que a pessoa que apenas gostasse de poetas que os livros de História concordam ser mais importantes não passaria, provavelmente, de um estudante consciencioso, que contribui com muito pouco de si na sua apreciação.”[i]

Otto Maria Carpeaux também observou o mesmo, só que por outro ângulo, ao estudar a obra do grande romancista russo Fiódor Dostoiévski:

“Dostoiévski admirava muito a francesa [George Sand], (...) cuja técnica novelística, bastante frouxa, agradou o seu próprio gênio indisciplinado. (...) Quanto à maneira de narrar o enredo, Dostoiévski preferiu sempre os enredos de George Sand – e de Sue, ao qual tomou emprestado a técnica de alargar um assunto meio policial meio de aventuras em grande panorama de costumes e problemas contemporâneos.”[ii]   

Ora, não é preciso ser muito inteligente para perceber que, quando um escritor é alçado ao status de divindade, todos à sua volta passam a ser preteridos, ainda que suas obras possuam valor estético elevado. Isso aconteceu no século XX, no Brasil, quando João Cabral de Melo Neto se tornou a menina dos olhos da crítica, ao passo que Jorge de Lima, poeta bem maior que o autor de Educação pela Pedra, foi praticamente ignorado.  Também ocorreu em Portugal: o intenso brilho de Fernando Pessoa como que  ofuscou a obra de Mário de Sá-Carneiro, poeta dos mais fortes que o país de Dom Sebastião produziu.

Na esfera das artes plásticas, tal fenômeno gerou ao menos duas dezenas de pintores de má-qualidade: quase todos os boschianos e brueghelianos do século XVI. Tais artistas são o que Pound chamava de diluidores: aqueles que aparecem depois dos inventores e dos mestres e que não foram capazes de realizar tão bem o trabalho.

Assim como Manuel Bandeira – que, contra tudo e contra todos, dizia ser Raimundo Correia melhor verse-maker que Bilac –, outros grandes escritores do séc. XX também buscaram beber da “água da fonte escondida”. Citemos três casos emblemáticos, a título de ilustração: Ezra Pound redescobriu a poesia chinesa antiga e os trovadores provençais; T. S. Eliot revisitou os Metaphysical Poets da Inglaterra e a assimilou a ironia cáustica de Jules Laforgue – que, diga-se de passagem, nunca esteve entre os poetas mais divulgados da França –, e, last but not least, Jorge Luis Borges se dedicou ao estudo da literatura escandinava medieval, da Kabbalah e do estranho misticismo de Emanuel Swedenborg.    

É evidente que a ânsia de redescobrir a roda pode muito bem ser um tiro no pé, pois que existem alguns escritores, como Shakespeare e Dante, que sempre ocuparão o centro do cânone. Por outro lado, a postura de ler apenas os clássicos bem pode se converter numa espécie de fetichismo, sobretudo porque nasce da idéia equivocada de que a tradição é algo imutável e não sujeito a nenhuma forma de rehierarquização. A propósito, como bem notou G. K. Chesterton, tradição não significa estarem os vivos mortos; mas os mortos vivos.     

É verdade que houve um acentuado declínio espiritual no último século e meio, mas não é correto afirmar que houve um declínio literário. Só pra ficarmos na esfera da Poesia, nos últimos cento e cinquenta anos o Ocidente produziu bardos do quilate de: W. B. Yeats, T. S. Eliot, Dylan Thomas, Rilke, Trakl, Hofmannsthal, Ungaretti, Montale, Rimbaud, Verlaine, Paul Claudel, Saint-John-Perse, Konstantinos Kavaphis, Boris Pasternak, Antonio Machado, García Lorca, Jorge Luis Borges, Fernando Pessoa, Jorge de Lima, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, dentre outros de igual valor. Se isso for declínio, desaprendi por completo o significado da palavra declínio... É por isso que devemos tomar cuidado quando falamos mal da produção literária do séc. XX...  

Fico com a impressão de que Friedrich Nietzsche – pelo menos neste caso em particular – estava certo:  "São nos tempos de grande perigo em que aparecem os filósofos. Então, quando a roda rola com sempre mais rapidez, eles e a arte tomam o lugar dos mitos em extinção. Mas projetam-se muito à frente, pois só muito devagar a atenção dos contemporâneos para eles se volta" (Der Wille zur Macht, n.420). [iii]




[i] ELIOT, T. S. A essência da poesia. Rio de Janeiro: Arte Nova, 1972. p 65.
[ii] CARPEAUX, Otto Maria. “Dostoiévski no mundo dos Karamázov”. In:  DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Irmãos Karamázov. Trad. de Rachel de Queiroz. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953. p. 34.
[iii] LEÃO, Emmanuel Carneiro. “Apresentação”. In: HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. Parte I. Petrópolis: Vozes, 2005. 15ª edição. p. 11.