Entrevista do escritor Bernardo Souto ao musicólogo, jornalista e compositor Carlos Eduardo Amaral
Originalmente publicada no site Audições Brasileiras, a 15 de abril de
2014
Carlos Eduardo Amaral: Bernardo,
o que é poesia (e o que ela não é)?
Bernardo Souto: Arte verbal rítmica, a poesia é uma maneira de
expressar os estados de alma mais profundos, seja através de símiles,
metáforas, metonímias ou outros tropos. Para Goethe, a poesia é a "voz do
inefável"; para Paul Valéry, "é uma tentativa de representar ou
restituir por meio da linguagem articulada aquelas coisas ou aquela coisa que
os gestos, as lágrimas, as carícias, os beijos, os suspiros procuram
obscuramente exprimir".
O que não é poesia? Não é poesia
todo discurso que recorra ao que Heidegger chamava de "falatório",
que é uma estratégia retórica utilizada para evitar o confronto com os
mistérios da existência e a sondagem do psiquismo profundo. Também não é poesia
o texto (ainda que disposto em versos) alicerçado em lugares-comuns, frases
feitas, ou qualquer outra espécie de automatismo discursivo.
CEA: A poesia pode prescindir da
forma?
BS: Não. Pode prescindir das
chamadas formas fixas, dos versos rimados e metrificados que encontramos nos
sonetos, nas baladas e nos rondós, por exemplo. Eis por que existem poemas em
prosa de elevado valor estético, como os de Baudelaire, os de Rimbaud e os de
Francis Ponge; existem também inúmeras composições em verso livre que se
ombreiam esteticamente às obras-primas na poesia tradicional, como o poema
Tabacaria, de Fernando Pessoa, ou as Elegias
de Duíno, de R. M. Rilke, O importante é que o campo de força sonoro do
poema esteja bem construído, sobretudo no caso do verso livre, e que haja
consanguinidade entre as imagens e atmosfera coesa, sobretudo no caso do poema
em prosa. Quanto ao que a crítica costuma chamar de poesia visual, não é poesia
de forma alguma, visto que a palavra passa a exercer um papel subalterno dentro
da composição.
CEA: Qual expressão de lirismo
disposta arbitrariamente em versos é poesia?
BS: Não há. T. S. Eliot – que era exímio versilibrista – dizia que o verso livre, lato sensu, não
existe. Com este paradoxo, Eliot quis expressar a sua preocupação em relação aos
aspirantes a poeta que não entendiam a verdadeira natureza do verso livre, tão
bem expressada por Manuel Bandeira:
"Verso livre cem por cento é aquele que não se socorre de nenhum sinal
exterior senão o da volta ao ponto de partida, à esquerda da folha de papel:
verso derivado de vertere, voltar. À primeira vista, parece mais fácil de fazer
do que o verso metrificado. Mas é engano. Basta dizer que no verso livre o
poeta tem de criar seu ritmo sem auxílio de fora. É como o sujeito que solto no
recesso da floresta deva achar o seu caminho e sem bússola, sem vozes que de
longe o orientem, sem os grãozinhos de feijão de João e Maria. Sem dúvida, não
custa nada escrever um trecho de prosa e depois distribuí-lo em linhas
irregulares, obedecendo tão-somente às pausas do pensamento. Mas isso nunca foi
verso livre. Se fosse, qualquer um poderia pôr em verso até o último relatório
do Ministro da Fazenda. Essa enganosa facilidade é causa da superpopulação que
infestam agora as nossas letras. O modernismo teve isso de catastrófico:
trazendo para a nossa língua o verso livre, deu a todo o mundo a ilusão de que
uma série de linhas desiguais é poema. Resultado: hoje, qualquer
subescriturário de autarquia em crise de dor de cotovelo, qualquer brotinho
desiludido do namorado, qualquer balzaquiana desajustada no seu ambiente familiar
se julgam habilitados a concorrer com Joaquim Cardozo ou Cecília Meireles."
Alguns – os bitolados – não
conseguiram captar as sutilezas que há nas palavras de Eliot e de Bandeira, e
por isso, de forma pueril, acreditam que qualquer composição em verso livre é
subpoesia; outros, de maneira igualmente cretina, acham que as formas fixas
estão ultrapassadas. Um dia, espero,
alcançaremos a sensatez do meio-termo.
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