quinta-feira, 16 de março de 2017

Entrevista

Entrevista do escritor Bernardo Souto ao musicólogo, jornalista e compositor Carlos Eduardo Amaral

Originalmente publicada no site Audições Brasileiras, a 15 de abril de 2014





Carlos Eduardo Amaral: Bernardo, o que é poesia (e o que ela não é)?

Bernardo Souto:  Arte verbal rítmica, a poesia é uma maneira de expressar os estados de alma mais profundos, seja através de símiles, metáforas, metonímias ou outros tropos. Para Goethe, a poesia é a "voz do inefável"; para Paul Valéry, "é uma tentativa de representar ou restituir por meio da linguagem articulada aquelas coisas ou aquela coisa que os gestos, as lágrimas, as carícias, os beijos, os suspiros procuram obscuramente exprimir". 

O que não é poesia? Não é poesia todo discurso que recorra ao que Heidegger chamava de "falatório", que é uma estratégia retórica utilizada para evitar o confronto com os mistérios da existência e a sondagem do psiquismo profundo. Também não é poesia o texto (ainda que disposto em versos) alicerçado em lugares-comuns, frases feitas, ou qualquer outra espécie de automatismo discursivo.

CEA: A poesia pode prescindir da forma?

BS: Não. Pode prescindir das chamadas formas fixas, dos versos rimados e metrificados que encontramos nos sonetos, nas baladas e nos rondós, por exemplo. Eis por que existem poemas em prosa de elevado valor estético, como os de Baudelaire, os de Rimbaud e os de Francis Ponge; existem também inúmeras composições em verso livre que se ombreiam esteticamente às obras-primas na poesia tradicional, como o poema Tabacaria, de Fernando Pessoa, ou as Elegias de Duíno, de R. M. Rilke, O importante é que o campo de força sonoro do poema esteja bem construído, sobretudo no caso do verso livre, e que haja consanguinidade entre as imagens e atmosfera coesa, sobretudo no caso do poema em prosa. Quanto ao que a crítica costuma chamar de poesia visual, não é poesia de forma alguma, visto que a palavra passa a exercer um papel subalterno dentro da composição.

CEA: Qual expressão de lirismo disposta arbitrariamente em versos é poesia?

BS: Não há. T. S. Eliot –  que era exímio versilibrista –  dizia que o verso livre, lato sensu, não existe. Com este paradoxo, Eliot quis expressar a sua preocupação em relação aos aspirantes a poeta que não entendiam a verdadeira natureza do verso livre, tão bem expressada por Manuel Bandeira:

"Verso livre cem por cento é aquele que não se socorre de nenhum sinal exterior senão o da volta ao ponto de partida, à esquerda da folha de papel: verso derivado de vertere, voltar. À primeira vista, parece mais fácil de fazer do que o verso metrificado. Mas é engano. Basta dizer que no verso livre o poeta tem de criar seu ritmo sem auxílio de fora. É como o sujeito que solto no recesso da floresta deva achar o seu caminho e sem bússola, sem vozes que de longe o orientem, sem os grãozinhos de feijão de João e Maria. Sem dúvida, não custa nada escrever um trecho de prosa e depois distribuí-lo em linhas irregulares, obedecendo tão-somente às pausas do pensamento. Mas isso nunca foi verso livre. Se fosse, qualquer um poderia pôr em verso até o último relatório do Ministro da Fazenda. Essa enganosa facilidade é causa da superpopulação que infestam agora as nossas letras. O modernismo teve isso de catastrófico: trazendo para a nossa língua o verso livre, deu a todo o mundo a ilusão de que uma série de linhas desiguais é poema. Resultado: hoje, qualquer subescriturário de autarquia em crise de dor de cotovelo, qualquer brotinho desiludido do namorado, qualquer balzaquiana desajustada no seu ambiente familiar se julgam habilitados a concorrer com Joaquim Cardozo ou Cecília Meireles."

Alguns – os bitolados – não conseguiram captar as sutilezas que há nas palavras de Eliot e de Bandeira, e por isso, de forma pueril, acreditam que qualquer composição em verso livre é subpoesia; outros, de maneira igualmente cretina, acham que as formas fixas estão  ultrapassadas. Um dia, espero, alcançaremos a sensatez do meio-termo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário