Por Bernardo Souto
T.S.
Eliot é, seguramente, um dos maiores escritores de nossa época. Num tempo de homens ocos, sua obra, por gravitar em
torno das coisas permanentes[i], por não negligenciar os "acontecimentos,
circunstâncias e expectativas da civilização"[ii] do século 20, por seu caráter sibilino e seu forte impacto
imagético, influenciou um sem-número de poetas e intelectuais: "A
repercussão de sua obra", afirma o ensaísta Otto Maria Carpeaux,
"quase equivale à história da poesia contemporânea"[iii]. O maior mérito da poesia de Eliot, no entanto,
talvez seja o que Russell Kirk chamou de "interseção do temporal com o
atemporal"[iv]. De
fato, o poeta anglo-americano soube, a um só tempo, assimilar aquilo que havia de vivo e
significativo na tradição literária, como
a poesia do pensamento e o
barroquismo dos metaphysical poets[v] ingleses,
e valorizar algumas conquistas estético-estilísticas da poesia moderna, tais como o verso livre de Whitman[vi], o
coloquialismo e a ironia cáustica de Laforgue[vii] e a ambiência
metropolitana da poesia de Baudelaire.
Thomas
Stearns Eliot nasceu em St. Louis, Missouri (EUA) a 26 de setembro de 1888. Em
1914, com a finalidade de expandir seus horizontes culturais, muda-se para a
Europa Continental, mais precisamente para a cidade de Marburg, na Alemanha. Com
a eclosão da I Guerra, vê-se obrigado a deixar a cidade germânica. Migra, ainda
em 1914, para a Inglaterra, onde permaneceria até a sua morte, em 1965. Certamente
a atmosfera de caos produzida pelas duas grandes guerras fez com que sua obra
poética girasse em torno do vazio espiritual e do tédio ontológico do homem do
século 20, cuja vida oscilava, como um pêndulo, entre a barbárie comunista e a
futilidade da aristocracia decadente. Era necessário que "a capacidade de
percepção ética que transpõe as barreiras da experiência privada e dos
acontecimentos da ocasião"[viii] fosse restaurada; era necessário congraçar novamente "a justa
ordem da alma à justa ordem da comunidade"[ix]. Foi
precisamente a essa demanda que a poesia de Eliot procurou responder:
"Eliot começou a perceber que devemos alimentar a imaginação moral, que
tem por base a teologia, a história e as imagens
poéticas"[x]. Sendo
assim, a poesia voltaria a ocupar a sua função primordial, que é de fecundar o
imaginário, apontar para a transcendência e criar uma sensibilidade suplementar
que permita ao homem apreender a realidade de maneira mais ampla.
A obra
poética de T. S. Eliot não é de fácil compreensão. Alguns comentadores chegam a
afirmar que foi um poeta para literatos.
Tal juízo, no entanto, não nos parece o mais correto. O autor de A
Terra Desolada apenas não estava disposto a fazer concessões a certo
tipo de leitor, que buscava na poesia um meio de entretenimento ou mesmo uma
espécie de lenitivo; tinha a convicção de que deveríamos optar pela "porta
estreita; porque larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à
perdição"[xi]. Como
Kafka, acreditava que "precisamos de livros que nos afetem como um
desastre, que nos magoem profundamente, como a morte de alguém a quem amávamos
mais do que a nós mesmos, como ser banido para uma floresta longe de todos. Um
livro tem que ser como um machado para quebrar o mar de gelo que há dentro de
nós."[xii] Para
Eliot, a poesia deveria ser um meio de despertar a consciência de uma sociedade
que se contentava com os prazeres efêmeros de uma rotina medíocre. Daí a sua
aversão à bem-comportada poesia de salão, poesia tão ao gosto das madames do five o'clock tea.
A crítica
tende a considerar a Canção de amor de J. Alfred Prufrock,
Os
Homens Ocos, A terra desolada e os Quatro
Quartetos como as obras máximas de T. S. Eliot. Poemas como Gerontion
e Quarta-feira de cinzas, embora bem realizados, não atingem o
nível estético nem a densidade filosófica dos quatro poemas acima elencados. Quanto
às obras teatrais, comungamos da mesma opinião de Carpeaux: "O teatro de
Eliot é pastiche é sobremaneira vulnerável: é pastiche[xiii] em várias camadas"[xiv] (p.
2698). Daí por que, no presente artigo, comentaremos apenas as obras-primas
eliotianas, a fim de que o leitor possa ter uma visão geral acerca do
itinerário poético daquele que é amplamente considerado um dos maiores poetas do séc. XX.
Publicada
em 1917, auge da I Grande Guerra, a Canção de amor de J. Alfred Prufrock
é a primeira obra-prima de Eliot. Prufrock é o típico homem medíocre da
decadente aristocracia britânica da primeira metade do século 20 -- um acidioso que sobrevive
a si mesmo como um fósforo frio[xv]. Conformado
com uma tediosa e tépida rotina, mede a vida em "colherinhas de café"[xvi]; a
lassidão da vontade o dominou por completo, por isso, tentando enganar-se a si
próprio, recorre ao subterfúgio de que "tempo
haverá"[xvii] para
mudar de vida, mas sabe-se incapaz de "inervar o instante e induzi-lo à
sua crise"[xviii], pois
sua tibieza o impede de fazer questionamentos acerca do verdadeiro sentido da
existência: "Não. Não sou o Príncipe Hamlet, nem pretendi sê-lo"[xix], e até
mesmo de ser testemunha ocular da verdade, que, à época, apresentava-se-lhe
encharcada em sangue humano. Com Prufrock, Eliot quis ironizar o egocentrismo
do homem contemporâneo, que, por não amar verdadeiramente a si mesmo, tornou-se
incapaz de amar a quem quer que seja. Prufrock é a personificação mesma do homem oco. "Nós somos os homens
ocos/ Os homens empalhados/ Uns nos outros amparados/ O elmo cheio de nada. Ai
de nós! (...) Fôrma sem forma, sombra sem cor/ Força paralisada, gesto sem
vigor"[xx],
escreveria Eliot na década de 1920. Os Homens Ocos (1925) é como que um
apêndice à Canção de amor de J. Alfred Prufrock, pois que nos apresenta um
mundo composto por homens já sem vigor e sem personalidade, que abriram mão da
vida interior e se refugiaram na zona de conforto dos rebanhos ideológicos,
quando não caíram em formas ainda mais degradantes de alienação.
Mas os
homens ocos não eram apenas os indolentes Prufrocks; eram também os apologistas
do comunismo e do nazi-fascismo – ideólogos que, nutrindo-se do legado do
racionalismo iluminista e do cientificismo positivista, pretendiam expulsar
Deus da História da humanidade. Na mesma década em que Eliot publicou The
Hollow Men, Adolf Hitler assumira o comando do Partido Nacional
Socialista dos Trabalhadores Alemães, e Josef Stalin, então secretário-geral do
Partido Comunista da União Soviética, tornara cada vez mais vasta a rede de
campos de trabalhos forçados, os Gulags
–. O clamor de Eliot era direcionado, sobretudo, às classes instruídas e aos
formadores de opinião, que viriam a se tornar co-responsáveis pelo fortalecimento
dos regimes genocidas da era do totalitarismo:
à época, "a guinada para o marxismo, ou para qualquer outra ideologia
totalitária, já era aparente no meio dos literatos"[xxi]. Nem mesmo os horrores da I Guerra seriam capazes
de fazer com as pessoas percebessem que já viviam sob o sol negro de uma terra
desolada.
Publicada
em 1922, A terra desolada se tornaria a obra mais famosa e influente de
Eliot. É um longo poema acerca do vazio espiritual da geração que viveu nas
trevas do período entre-guerras. A poesia possui sintaxe desconexa, linguagem
enigmática, inúmeras alusões mitológicas, fragmentos e citações de todas as
épocas, de Virgílio a Shakespeare, das Upanishads a Nerval. Tais recursos
estilísticos explicam-se porque, para Eliot, a "poesia deve ser entendida,
basicamente, como um 'fenômeno de cultura', como um processo
capaz de trazer à tona do momento presente o conhecimento e as experiências
espirituais acumuladas ao longo de outros tantos momentos passados"[xxii]. The
Waste Land é o ponto alto da primeira fase da poesia de Eliot, que,
simbolicamente, representa o Inferno: "Prutrock, Gerontion,
The
Waste Land e The Hollow Men são esboços do Inferno; Ash Wednesday nos conduz ao Monte
Purgatório; e os Four Quartets para o jardim das rosas, onde os aparentes
opostos são reconciliados"[xxiii]. Assim,
intencionalmente ou não, Eliot revisitara a estrutura tripartida de a Divina
Comédia de Dante.
"Por
que abriria a águia suas velhas asas?"[xxiv],
indagaria Eliot no poema Quarta-feira de cinzas. A águia
simboliza a regeneração e a busca da transcendência. Não é à toa que é
recorrente na segunda parte de a Divina Comédia – o Purgatório. A ave só alçaria voo nos Quatro
Quartetos, a opus magnum de
T. S. Eliot. Poema de fundo cristão, os Quartetos são uma densa meditação sobre
o sentido da vida, "uma longa e dolorosa elegia sobre a caótica condição
humana e o desconcerto do mundo, um discurso de alta voltagem lírica e
dramática sobre o significado do tempo, um poema-partitura de fortes
implicações filosófico-religiosas no qual o autor nos dá a fundamentação
histórica de sua fé no Absoluto."[xxv] Seu tema
central é o vislumbre da eternidade no seio do tempo, que só se realizará
quando a humanidade se reconciliar com Deus, representado no poema como o
"coroado nó de fogo" que há de remir os homens ocos.
Além de poeta, Eliot
também foi um destacado ensaísta. No ensaio Tradição e talento individual
(1917), Eliot apresenta de forma sintética a sua cosmovisão literária,
alicerçada na idéia de que a literatura deve ser uma continuidade cultural, uma
comunidade de almas: "Nenhum poeta,
nenhum artista, tem sua significação sozinho. Seu significado e a apreciação
que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os
artistas mortos. Não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo, por contraste
e comparação, entre os mortos"[xxvi];e volta a defender a importância da tradição em Que é
um clássico?: "Uma literatura
madura tem por detrás de si uma história: uma história que não é simplesmente
uma crônica, um acúmulo de manuscritos e de obras de todas as espécies, mas um
processo organizado, embora inconsciente, de uma língua para concretizar suas
próprias potencialidades dentro de seus próprios limites"[xxvii].Desta forma, na obra de eliotiana, a crítica e a
poesia formam uma espécie de continuum,
possibilitando, assim, uma melhor compreensão do todo através das partes.
Tanto nos
poemas como nos ensaios, Eliot nos ensinou que os mortos estão vivos: eles
vivem dentro de nós.
[i] KIRK,
Russell. A era de Eliot. São Paulo: É
Realizações, 2011, p. 135. Russel Kirk (2011, p. 185) entende por coisas permanentes a continuidade
cultural que nos faz enxergar uma "ordem moral que é percebida como algo
maior do que as circunstâncias do tempo e da experiência privada; que nos torna
cientes da nossa adesão como membros da comunidade das almas; aprendemos que a
consciência e a racionalidade não começam com o eu ou com os contemporâneos".
[ii] KIRK,
Russell. A era de Eliot. São Paulo: É
Realizações, 2011, p. 135.
[iii] CARPEAUX,
Otto Maria. História da Literatura
Ocidental. Vol. 4. São Paulo: Leya, 2012, p. 2699.
[v] Grupo de poetas ingleses do XVII que ficou conhecido por
cultivar uma poesia meditativa e
filosófica, de viés barroco, cujos principais temas eram a morte, o tempo, o amor e Deus. Dentre eles, merecem destaque John Donne, George Herbert,
Richard Crashaw, Andrew Marvell, Henry Vaughan e
Thomas Trahere.
[vi] Poeta norte-americo do séc. 19 que é considerado
por muitos como o fundador do verso livre (embora existam precursores, Whitman
foi o primeiro a elevá-lo ao patamar de grande poesia).
[vii] Poeta simbolista francês
cuja obra é marcada por um pessimismo irônico e por uma cosmovisão
decadentista.
[viii] KIRK, Russell. op. cit., p. 140.
[ix] KIRK, Russell. op. cit., p. 140.
[xi] Bíblia
Sagrada, Mateus 7:13.
[xiii] O pastiche é definido como um recurso
literário que se caracteriza pela apropriação abusiva ou decalque da obra
alheia.
[xiv]
CARPEAUX, Otto Maria. História da
Literatura Ocidental. Vol. 4. São Paulo: Leya, 2012, p. 2698.
[xv] PESSOA,
Fernando. "Aniversário". In: Fernando Pessoa – obra poética. Rio de
Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986, p. 313.
[xvi] T.
S. ELIOT. "Canção de amor de J.
Alfred Prufrock". In: T. S. Eliot – Poesia. Trad.
Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 71.
[xvii] T.
S. ELIOT. "Canção de amor de J. Alfred Prufrock". In: T. S. Eliot – Poesia. Trad.
Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 70
[xviii] T. S. ELIOT. "Canção de
amor de J. Alfred Prufrock".In: T.
S. Eliot – Poesia. Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2006, p. 72.
[xix] T. S. ELIOT. "Canção de amor de J.
Alfred Prufrock".In: T. S. Eliot –
Poesia. Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 73.
[xx] T. S. ELIOT. "Os homens
ocos". In: T. S. Eliot – Poesia.
Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p.133.
[xxi] KIRK,
Russell. op. cit., p. 241.
[xxii]
JUNQUEIRA, Ivan. In: “Eliot e a poética do fragmento”.In: T. S. ELIOT. T. S. Eliot – Poesia. Trad. Ivan
Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 38-39.
[xxiii]KIRK, Russell. op.
cit., p. 459.
[xxiv] T. S. ELIOT. "Quarta-feira
de cinzas". In: T. S. Eliot – Poesia.
Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p.139.
[xxv] JUNQUEIRA, Ivan. In: “Eliot
e a poética do fragmento”. In: T. S. ELIOT. Poesia. Trad. Ivan Junqueira. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 51.
[xxvi] ELIOT,
T. S. “Tradição e Talento Individual”. In: Ensaios.
Trad. Ivan Junqueira. São Paulo: Art Editora, 1989, p. 39.
[xxvii] ELIOT, T. S. A essência da poesia: estudos e ensaios.
Trad. Maria Luiza Nogueira. Rio de Janeiro: Artenova, 1972, p. 84.