Por Bernardo Souto
“Se alguém disser: Amo a Deus, e odiar a seu semelhante, é mentiroso; pois aquele que não ama seu semelhante, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1 João 4,20).
O crítico literário canadense Northrop Frye dizia que uma das
funções primordiais da Literatura é criar personagens verossímeis e
prototípicas, personagens que nos ajudem a sondar a psique humana e a deslindar
as intrincadas relações sociais nas quais estamos inseridos. É impossível que
alguém leia atentamente Otelo, por exemplo, e não passe a ter uma
visão mais rica e densa do que se passa na cabeça do ciumento e do invejoso. Os
grandes escritores, de fato, têm essa capacidade de mergulhar em profundidade
na alma do homem. Basta dizer que, não fosse pela leitura de Sófocles e de
Dostoiévski, Freud dificilmente teria chegado a formular alguns conceitos que
são basilares dentro da Psicanálise. E aqui não me cabe dizer até que ponto o
método científico do Pai da Psicanálise é válido, mas é
preciso dizer que, sem a contribuição intelectual do famoso clínico austríaco,
pensadores do porte de Viktor Frankl ou de Leopold Szond não teriam os
fundamentos sobre os quais assentaram posteriormente as suas ideias.
Pois bem. Relendo despretensiosamente as Memórias
Póstumas de Brás Cubas, deparo-me com uma dessas personagens prototípicas –
no sentido fryiano do termo –, com uma dessas personagens que nos fazem
enxergar o modus vivendi de todo um grupamento humano: trata-se
do cônego, tio de Brás Cubas. O cônego é
o típico cristão que, por se ater demais a externalidades, acaba por não enxergar o essencial. A descrição que o Bruxo do Cosme Velho faz do santarrão contém uma agudeza de percepção digna dos grandes mestres da Literatura:
"Bem diferente era o tio cônego. Esse tinha muita
austeridade e pureza; tais dotes, contudo, não realçavam um espírito superior,
apenas compensavam um espírito medíocre. Não era homem que visse a parte
substancial da Igreja; via o lado externo, a hierarquia, as preeminências, as
sobrepelizes, as circunflexões. Vinha antes da sacristia que do altar. Uma
lacuna no ritual excitava-o mais do que uma infração dos mandamentos."
Ora, não há como ler essa caracterização e não lembrar
de certa tendência neofarisaica e neodonatista que existe na Igreja de
hoje. É que muitos cristãos, ao se apegarem demasiadamente ao aspecto
ritualístico e litúrgico do Cristianismo, acabam negligenciando questões importantíssimas, como as chamadas obras de caridade e de misericórdia; afinal de contas, indaga-se o poeta Ângelo Monteiro: "quantos desses
indivíduos que, sem conseguirem descobrir, durante a existência, a face do
próximo, estariam em verdadeiras condições para contemplar a face de Deus por
toda a eternidade?". Ou, para ser ainda mais enfático: “A fé sem obras é morta” (Tg 2, 17). E assim, esquecendo-nos de que a parte é só uma parcela
do todo, acabamos caindo em heresia, pois que "a heresia [diz-nos
Chesterton] não consiste em negar a verdade, mas em apegar-se a um só aspecto
da verdade e dali julgar, ou melhor, pré-julgar a existência e reduzi-la toda a
um único aspecto" (cf. The Outline of Sanity).
É precisamente por isso que, como o Padre Paulo Ricardo, não
creio muito nesse negócio de católicos conservadores, nem muito
menos em católicos progressistas, que desejam transformar a Igreja numa espécie de ONG filantrópica imanentista. Só acredito em católicos
autênticos, ou, para ser redundante, em católicos totais:
“O que quer dizer Católico? A palavra Católico significa o
Todo, você precisa ver o Todo. Mas o fanático... O fanático faz
o quê? Ele pega uma verdade, e transforma aquela uma verdade em verdade
absoluta. E se agarra com aquela verdade. Pode ser um fanático
de direita, ou um fanático de esquerda, não
interessa. Ele pega uma verdade, e com aquela verdade ele
condena todo mundo. E se torna rancoroso, e se torna triste... Mas o Católico,
ele consegue ver o Todo!" (Padre Paulo Ricardo de Azevedo,
TDE.10: Terapia da Tristeza, dos 30` 21`` aos 31` e 19``).
Não foi à toa que Chesterton, que também sabia das coisas, resolveu estudar
especificamente Santo Tomás de Aquino e São Francisco de Assis. No fundo, ele percebeu que são santos complementares, no sentido de que se completam.
Sim, o verdadeiro católico consegue ver o todo.
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